quinta-feira, 3 de outubro de 2013

João: o homem que carregava um relógio no peito.

Zelador de tantas vidas, mas não zelava pela sua. Era assim que se sentia. Dever cumprido de cuidar de todas as tarefas do prédio, mas um sentimento grande de derrota que lhe cobria de arrependimentos e vontade de ter feito diferente, ou de fazer diferente. Ah, bobagem era. Já estava velho mesmo. Perto de morrer, pra que mudar?

Seu conflito era tal que por vezes não distinguia se falava de si, ou se delirava, incorporando talvez outras vidas, as vidas pelas quais ele zelava, iludindo-se que pudesse também olhar-se no espelho e ver algo além de nada. Enxergar alguma pessoa naquele pedaço de reflexo, nem que fosse lá no fundo, uma ruga, uma pele cortada ao se barbear, algum resto de vida, algo que pudesse contar sua história.

Nada. Não havia nada na rotina daquele velho senhor, que há tantos anos dedicou seus dias ao Edifício Diamante, em uma tranquila rua da Zona Sul de cidade qualquer boa de se viver. Viver lá fora, pensava ele. Ele vivia só dentro. Dentro dos portões, mas fora de si. Por dentro dele mesmo, onde deveria perceber-se humano, não via nada, que dirá de vida. Aspecto quase raro em sua robótica aparência, preenchidas de "bom dia" e "boa tarde", "sim, senhor" e "não, senhora".

Não foi a toa que recebeu durante mais uma de suas infinitas noites, no seu minúsculo quarto, uma visita que lhe mudou a vida. Até hoje não se sabe se naquele dia estava acordado ou dormindo, mas o fato é que algo mexeu com seu reflexo, e jogou em sua cara que aquele velho zelador não tinha história. E precisava ter.

- Você é um menino, uma criança desamparada, uma fita virgem. Sua verdadeira idade está aqui, no coração. - Disse a visita apontando para sua cabeça, sendo logo corrigida por ele, que lhe mostrou que o coração está no peito.

Mal sabia ele que o pouco de prova que ele sentia de que vivo estava, apenas o deixava iludido diante de sua condição de morto. Agarrava-se tanto à imensidão das batidas do chamado coração, a tudo que significava cada explosão que bombeava sangue em suas veias, que nunca percebeu ser aquele um relógio que batia em seu peito.

- Mas será que dá pra ser diferente? Fazer diferente? Eu me arrependo, juro que sim.

Ele descobriu que não dava. Diante do abismo, não havia nem mesmo a opção de pular na imensidão de suas dúvidas, nem condições de criar asas para voar. Estava morto na ilusão de estar vivo. Precisava ressuscitar antes que fosse tarde demais. Era tudo tão óbvio, afinal. Um relógio que lhe batia dentro do peito, aquele mistério todo tinha razão.

Tic.

Tac.

Uma contagem regressiva que lhe lançava no abismo, e lhe tirava a chance de se arrepender, de fazer novamente.

- Cada vez que o relógio bate, menos uma batida de vida você tem.

Por falar em bater, pensou, estou apanhando. Uma batida a menos de vida e um hematoma a mais na imagem que agora conseguia enxergar claramente diante do espelho. A vida não avança, retrocede. O tempo só diminui com o relógio que bate no peito.

- Por isso que eu vim, João - disse a visita. Para te ajudar a ter ritmo nas batidas de seu tempo.

Talvez seja esse, na verdade, o maior mistério da fé, concluiu. Acreditar que uma visita ainda vai chegar, e nos apresentar o ritmo das batidas de nosso tempo.


  César Augusto Alves 

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